quinta-feira, outubro 19, 2006

EDUCAÇÃO DE HÁBITOS

Regresso a Lisboa, no navio “Creoula.” Após uma viagem de ida bastante calma, seguida de uma breve estada de dois dias em Cádiz, o mau tempo oferece-nos uma viagem de retorno muito mais agitada. Mas ainda bem. Além de tornar a aventura mais excitante, dá-nos também a oportunidade de fazer a faina geral de mastros – eu estou de serviço ao mastro de mezena, aquele mais à ré – e ver que belo é este lugre de quatro mastros com as suas velas içadas e enfunadas pelo vento.

Findo o trabalho no convés, desenvolve-se um diálogo deveras interessante entre o D ViD e eu. Ele é um tipo com cerca de 35 anos, casado e pai de uma menina de três anos. Está a adorar a experiência a bordo do “Creoula” e confessa-me que, a partir de agora, pretende fazer férias de aventura todos os anos. Para o ano, vai com uns amigos descer rios em canoa ao Canadá. Já tem tudo planeado. Inocentemente, pergunto-lhe se a esposa não alinha nessas coisas. “Nada,” responde ele. “Nem compreende o meu gosto pela aventura. E ficou toda chateada por eu insistir em fazer esta viagem no ‘Creoula.’” Mas antes que eu pense mal da rapariga, ele esclarece: “A culpa é minha. Eu sempre gostei destas coisas, o problema é que deixei de as fazer quando conheci a minha mulher. Agora, que estou a recuperar essa parte da minha vida, ela não compreende a minha súbita mudança. Acha que estou diferente. Mas eu sempre fui assim!”

Ele tem razão: a culpa é toda dele. Numa relação amorosa, um homem deve ser rigoroso a delimitar o seu espaço pessoal e feroz a defendê-lo. Caso contrário, a sua amada usurpa-o sem piedade. Este gajo cedeu... e habituou mal a mulher. Para mudar, vai ter de destruir o que já está consolidado para poder reconstruir. Tem de convencer a patroa a largar os hábitos de sempre – que lhe servem a ela, mas não a ele – para depois a educar correctamente, que era o que deveria ter feito logo de início. Mas... educar?! (Imagino os esgares de censura.) Educar, sim. Ou acaso julga que só aos pais – e, vá lá, aos professores (ou, pelo menos, aqueles que insistem em educar, para além de formar) – cabem responsabilidades nessa área? Engano. Os pais educam os filhos, sim, mas os filhos também educam os pais. Aqueles que se demitem dessa responsabilidade, chegam aos 30 anos ainda a pedir licença aos papás para sair à noite. Do mesmo modo, os esposos e amantes se educam entre si e até os amigos se educam uns aos outros. Em suma, qualquer relação interpessoal que desenvolva hábitos de convivência, pauta esses hábitos pelo modo como os intervenientes se educam mutuamente. Se essa relação de educação não for recíproca, presenciamos a submissão – por vezes espontânea – de uma das partes à outra.

Naturalmente, uma relação também é feita de concessões de parte a parte. Porém, quando uma pessoa cede tanto que acaba por perder parte da sua identidade no processo (como é o caso deste meu amigo, cuja esposa desconhecia totalmente a sua paixão por desportos de aventura), é altura de equacionar até que ponto não estará a deixar a relação sedimentar-se numa existência... mentirosa. O estabelecimento de hábitos (e prefiro não usar o termo “rotinas” por ser geralmente conotado com a estagnação dos rituais criados) é primordial para a consolidação e fortalecimento das relações interpessoais. Por isso, convém criar hábitos saudáveis. Desde o início.

E se a madame não gostar, problema dela. Habitue-se. Ao menos, sabe desde cedo com o que contar (ou seja, se quiser pular do barco, esta é a melhor altura). Porque, convenhamos, é algo ingrato para uma esposa ser colocada nesta posição a esta altura do campeonato. Ela não tem culpa que o marido seja um totó desprovido de espinha dorsal que se deixa manipular facilmente... Ou melhor, deixava. Que o farsante, afinal, andou a enganá-la todos estes anos, fazendo-a crer que era o que não era. No final, a única coisa certa é que a necessidade dele de mudança revela que o gajo não é feliz na relação. E agora, como suportar a ideia de que o seu marido não é – e, provavelmente, nunca foi – feliz com ela? Quem é que quer pagar esta factura? Ah, pois é...