quarta-feira, junho 27, 2007

A GRANDE ZARAGATA

Um casal amigo namora há quase dez anos. Não ininterruptamente, claro. Há coisa de dois anos atrás, ela achou que precisava de experimentar outras coisas de vida, decidiu “dar um tempo” e, aproveitando a loucura do Verão, andou a arejar a passareca com um grande passarão que oportunamente deu à costa. Finda a estação caliente, o Outono trouxe o prenúncio de dias mais frios, o passarão emigrou para outros climas, e a saciada (mas algo desiludida) menina, chegando à conclusão que era preferível o conforto da previsibilidade de uma relação antiga ao desamparo inerente ao estado de solteira e descomprometida, voltou para o seu passarito (para júbilo deste). Enquanto andou cada um para seu lado, porém, fui eu quem serviu de pronto-socorro emocional ao casal desavindo (ah, muitas lágrimas já foram carpidas nestes meus ombros!). Ouvi a versão dela... e ouvi a versão dele. E devo dizer que eram substancialmente diferentes. No entanto, havia um ponto em que, curiosamente, ambas as versões concordavam: em tantos anos de namoro, aqueles dois nunca se tinham zangado uma única vez. O que considero, no mínimo, insalubre.

Todas as relações amorosas tendem necessariamente para o rompimento. É inevitável. Duas pessoas, fruto de diferentes educações, com diferentes idiossincrasias, diferentes modos de encarar a vida, diferentes hábitos, sonhos, impulsos, desejos, medos e inseguranças – é apenas natural que todas essas divergências provoquem atritos, e que esses atritos, por acumulação, conduzam ao conflito, fruto do desentendimento entre o casal. E é aqui que reside a grande diferença entre as relações saudáveis e aquelas que nem por isso: os casais saudáveis sabem resolver os desentendimentos, pela comunicação. Contudo, nenhuma relação está livre do conflito. Este não deve, no entanto, ser encarado apenas como uma manifestação negativa de sentimentos negros e consequências nefastas. O conflito é, antes de tudo, um alerta de que algo não vai bem na relação em causa. Logo, deve ser visto como uma oportunidade para rectificar aquilo que não está a funcionar correctamente. É frequente dois amantes sentirem-se mais próximos após uma zanga (e subsequente reconciliação) – sentem-se assim porque se compreendem melhor.

Por isso, eu torço o nariz quando me falam de uma relação em que os amantes nunca discutem. A menos que se compreendam mutuamente até ao mais ínfimo pormenor desde o início, coisa que considero, de todo, impossível, uma relação sem conflito só pode ser uma relação doente: uma relação onde simplesmente não existe amor ou uma relação em que um dos lados cede sempre à vontade do outro (que, segundo as más línguas, consiste precisamente no caso que referi a início – e não é preciso ser nenhum génio para se perceber que é ela quem manda ali).

O conflito é até, para muitos casais, a única coisa que mantém a relação activa e a funcionar. Não fossem as constantes querelas e essas relações estariam fadadas a desvanecer-se placidamente na apatia de uma absoluta falta de sentimento e emoção. Paradoxal? Nem pensar. Essas relações precisam da discórdia para manter a energia amorosa a fluir constantemente. Porque ao desentendimento e à zanga segue-se sempre o entendimento e a reconciliação e não há nada mais doce numa relação do que fazer as pazes e renovar os votos amorosos. Com sexo do bom, claro. Obviamente, uma relação que precise de recorrer persistentemente a esse artifício para obter a auto-validação que, de outro modo, não conseguiria manter, é também uma relação doente.

Porém, não podemos ignorar os benefícios que uma boa zanga ocasional produz numa relação amorosa. A discórdia faz disparar o coração e correr mais rapidamente o sangue. Faz as pessoas gritar e suar. Liberta energia. Energia suficiente para reactivar uma relação em estagnação, do mesmo modo que uma descarga eléctrica reanima um coração moribundo. Na minha opinião, o que o meu amigo passarito precisava era de mandar uns berros furibundos à passareca. E depois, mandava-lhe uma furibunda queca. Ela havia de gostar.

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